A Palavra Mágica


            Há na vida acontecimentos que encerram lições e que, ainda que no momento em que vividos sejam apenas dolorosas experiências, acabam, com o tempo, por se tornar riquíssimos de significado e importantes aprendizagens que nos acompanharão para sempre. Assim é a história de Rosicler.

            Quando Rosicler tinha nove anos, tudo na sua vida era aparentemente perfeito. Vivia num apartamento com os pais e a irmã mais nova, tinha uma casa de fim-de-semana, onde também passava férias, era agradavelmente bonita e inteligente, tinha muitos amigos e bons resultados na escola. Quase sem dar conta disso, Rosicler era um pouco arrogante e egoísta. No fundo, não compreendia como alguém pudesse não ter as suas capacidades nem o seu bem-estar na vida, já que tudo sempre lhe parecera tão fácil. Era quase natural ser-se bonito, inteligente, alegre, agradável no trato com os outros. Tudo na sua vida fora sempre tão tranquilo como um fio de regato que escorre pela terra escavando um sulco suave. Quando Rosicler brincava com as suas bonecas preferidas, recriava o mesmo universo de harmonia e bem-estar que tinha na vida à sua volta, ignorando que se pudesse ser diferente do que ela era.
            Naturalmente, que as notícias do mundo chegavam a sua casa. Tinha nove anos e já entendia que havia fome, guerras, cataclismos. Sabia perfeitamente que era necessário reciclar e separar os lixos, poupar electricidade e poupar água, e salvar o planeta das múltiplas agressões a que o homem o sujeitava desde há dois séculos. Sabia que havia animais em vias de extinção e que era necessário preservar o habitat natural de algumas espécies. Sabia também que em alguns países havia crianças-soldado e outras que eram escravizadas em trabalhos de adulto e outras também que, porque tinham nascido mulheres, não tinham o direito de ir à escola. Sabia tudo isto e muito mais. Em casa falava-se livremente sobre os assuntos mais prementes da sociedade e ela, desde cedo, interessava-se por tudo o que se relacionava com o mundo em que vivia. Contudo, o seu universo real era na verdade muito limitado. O mundo, o grande universo exterior, estava para além e não era visível. No fundo, o seu mundo real era diminuto e pouco mais do que centrado na sua própria pessoa, na sua família, na casa e na escola. E, curiosamente, sobre a existência muito pouco, até aos nove anos, ouvira falar. Claro que sabia que não se devia mentir, nem roubar, nem humilhar os outros; mas não tinha ideia que pudessem haver dores e sofrimentos que magoassem para toda a vida.

            O primeiro sinal de que algo estava a mudar surgiu quando a mãe lhe disse que teria de abandonar as aulas de piano na escola de música. Primeiro não percebeu o porquê, mas a mãe explicou docemente que havia dificuldade em pagar a mensalidade, que os tempos estavam difíceis, e que, de qualquer modo, ela poderia continuar a praticar em casa  e que, talvez, para o próximo ano, ela pudesse voltar àquela ou a outra escola. Teve pena, mas foi uma dor passageira. Pensou vagamente que haveria comentários das colegas, mas, como a mãe lhe tinha sugerido, diria que escolhera fazer uma pausa nos estudos. Ninguém precisava de conhecer os verdadeiros motivos. E, pela primeira vez na sua vida, percebeu que havia uma margem de não dito entre ela e os outros e que a sua vida não tinha a suave transparência de um regato que serpenteando saltita de pedra em pedra num prado verdejante.
            Depois, inesperadamente, houve a notícia da doença da irmã mais nova, com quem deixou de poder brincar, e que apenas visitava ao fim-de-semana no hospital. E, no espaço de três meses, sucedeu  a morte da avó, o desemprego da mãe e o divórcio dos pais. Um tufão varria a sua vida não deixando nada intacto. Toda a certeza e segurança em que sempre vivera foram subitamente destruídas e à noite, antes de adormecer, havia uma pergunta que se repetia na sua cabeça, quase até à exaustão: «Porquê eu?», «Porquê eu?».
            Rosicler, no final dos seus nove anos, perdera a energia, a candura, a inteligência e a vitalidade. O rosto ganhou um contorno de grande seriedade e deixou de esboçar um sorriso. As amigas da escola afastavam-se dela e sabia que havia comentários e sussurros sobre um certo desleixo com que se vestia e por não frequentar as aulas de piano. Deixara de ser igual e já não era aceite. E sabia que se dizia que teria de mudar de apartamento e se calhar até de escola. Nas aulas, não conseguia estar atenta. Quando a porta da sala se fechava, havia um sentimento de opressão sobre ela que quase a levava a gritar, e quando a campainha tocava para o recreio sentia  uma libertação. Não que brincasse com os outros, quase não brincava, mas vagueava solitária junto à cerca, sem sentir obrigação de fazer coisa alguma e isso era o fundamental. Antes não entendia que algum colega não conseguisse fazer uma redacção ou um desenho, ou preencher uma ficha de aritmética. Agora era ela que subitamente era incapaz de fazer com acerto a mais simples tarefa. Tudo lhe parecia um empreendimento épico. Não tinha forças nem vontade. Pior, de tudo, descobria à sua volta que não há compaixão pelos fracos e debilitados e que só os fortes são bem sucedidos. E agora ela era um dos fracos. Ela que antes tinha sido forte e que também naturalmente olhara com desdém aqueles que, por alguma razão, não conseguiam realizar uma tarefa ou então os que não estavam no mesmo patamar social em que ela antes havia estado. O certo é que os resultados escolares desceram, e não deixou de reparar no comprazimento de alguns, que antes tinham classificações até inferiores às suas. E o mais desesperante de tudo é que a começaram a tratar como se o resultado das suas acções espelhassem uma natureza interior pobre e sem vida.
            Pouco ou nada havia a fazer, a mãe não podia pagar a um psicólogo e os problemas demoravam a ser resolvidos. A irmã melhorava aos poucos, a mãe conseguira um emprego com alguma estabilidade e o pai, agora mais distante, cuidava dela aos fins-de-semana. Rosicler confrontava-se com a dureza da vida pela primeira vez na sua existência. Mas então algo novamente aconteceu.
            Estava-se no mês de Junho, as aulas prestes a acabar, e o pai falou com ela.
            «- Rosicler, tenho óptimas notícias. Para a semana vais para casa do tio Pedro e da tia Mariana e ficas lá até ao final de Agosto. A mãe não pode tomar conta de ti, porque a tua irmã vai para casa e precisa de toda a atenção e eu preciso de me preparar para um exame em Setembro. Lá vais ficar bem. Tens uma casa enorme só para ti e todos os mimos dos tios que adoram tomar conta de crianças. Vamos, não faças essa cara. Daqui a uma semana vais adorar e depois estamos, eu e a mãe, à distância de um telefonema. Olha comprei-te um telemóvel. Que tal?»
            Rosicler ficou em silêncio. Talvez os olhos tenham brilhado ligeiramente, quando olhou para o telemóvel. Mas apenas durante um breve instante. Depois, ficou séria outra vez. Havia uma certa tristeza em ir para casa dos tios, para longe, no litoral, pois, de certa forma, era mais uma perda o ficar longe da família. Ainda esboçou um pedido, gostaria de ficar em casa e até ajudar; mas o pai repetiu duas vezes um não categórico. Iria até ao final de Agosto. Não havia alternativa. Estava tudo tratado e combinado. No fim-de-semana seguinte, ele mesmo a iria levar.
           
            Foi uma viagem calma. O pai pôs um cd de música clássica a tocar e durante todo o caminho, Rosicler não tirou os olhos da paisagem, que, apenas num segundo tão presente, ficava sempre para trás e, enquanto isso sonhava e construía imagens na imaginação. Imagens de um mundo perfeito - o seu mundo, o único que conhecia - a casa, a família reunida de novo, a irmã recuperada da doença e brincando outra vez, o sucesso na escola e com os amigos, o gosto por tudo e por todas as tarefas. Mas, mal construía uma imagem de sonho, logo vinha agudamente a ideia da realidade presente que era tão diversa e percebia que estava apenas a sonhar e que se calhar até o sonho não valia a pena ser sonhado, porque como um fio ténue de um regato se escoava até desaparecer numa terra seca e agreste. Chegaram ao fim de duas horas de viagem. Os tios receberam-na com simpatia. Teria um quarto para si e muito espaço para brincar.  A tia lamentou logo não haver computador, porque, bem sabia, era o que os jovens mais gostavam; mas, em contrapartida, tinha muito espaço e muitas actividades para fazer; ela se encarregaria de a manter sempre ocupada; dariam óptimos passeios e fariam muitas coisas divertidas e à noite poderiam ver televisão.
            Quando o pai se despediu, Rosicler não chorou nem disse nada. Falariam pelo telemóvel todos os dias. A mãe telefonaria também. Seriam dois meses de férias longe das dificuldades da família. E depois, em Setembro, logo se retomaria a rotina habitual da vida nova que agora era a sua. Para já, o mais importante era aproveitar a hospitalidade dos tios e portar-se bem como uma menina de nove anos já crescida. Estas foram as últimas palavras do pai. E a tia deu-lhe a mão e levou-a a conhecer a casa toda, repleta de móveis escuros muito antigos, que davam à casa um ar sério e pesado, mas que deixavam antever uma certa memória  das coisas passadas que permaneciam no presente. O quarto, onde ia ficar, era muito simples e agradável. Tinha uma larga janela com portadas em madeira escura, sem cortinas, uma cama, uma cómoda e um pequeno sofá. A um canto, para sua surpresa, havia uma pilha de brinquedos antigos, entre eles uma casa de bonecas toda em madeira, alguns livros infantis, e copos, chávenas, louças e talheres miniatura para brincar.
            «- Gostas? - Perguntou a tia. - Tudo isto são brinquedos de quando eu era da tua idade. Bem sei que hoje gostam de outras coisas, mais modernas. O computador é que vinha a calhar, não era? Há jogos, não é assim. Mas, sabes, o teu tio não se entende com essas coisas novas e eu também já não tenho idade para me pôr a aprender. Ou melhor, não tenho qualquer interesse por isso. Temos a televisão e o telefone, é o que importa. Não precisamos de mais. Gostas da bonecada? »
            «- Sim, claro, tia. Gosto muito.»
            «- Fica então à vontade. Amanhã damos um grande passeio. Vamos à vila fazer compras de manhã. E à tarde vamos até uma praia deserta, onde podemos estar completamente à vontade. Só há uma coisa. Não podes ir para a água, porque eu não sei nadar e todo o cuidado é pouco. Dá uma volta enquanto eu arrumo as tuas roupas nas gavetas.»

            Os dias que se seguiram foram agradáveis, calmos e tranquilos. De manhã, faziam-se as compras, arrumava-se a casa, tratava-se do almoço. Rosicler participava e ajudava em tudo e assim permanecia sempre ocupada e  com afazeres que lhe preenchiam o tempo. À tarde, dava-se um passeio até à praia quase sempre deserta, onde ela passeava junto à beira do mar, apanhando conchas e pequenas pedras macias e arredondadas e minúsculos búzios brilhantes, enquanto a tia ficava sentada debaixo de um grande chapéu de sol invariavelmente a ler ou a tricotar. Não tinha motivos para estar triste, pensar-se-ia, mas o rosto que nos últimos meses se tornara sério e adulto, mantinha uma rigidez e seriedade permanentes. Algo no seu coração se quebrara e isso era aparentemente irrecuperável. As ideias de segurança e de permanência e de imutabilidade não faziam já parte da sua vida. Agora olhava para o seu universo como uma coisa insegurança onde a iminência de qualquer desastre poderia surgir a qualquer instante e onde nada era garantido. O pior de tudo era o que se passara consigo mesma. Até a inteligência, a alegria e a capacidade de realizar coisas tinham desaparecido.

            A praia formava uma pequena enseada, rodeada por escarpas rochosas e era aconchegante e reparadora como um colo de mãe. Num dos extremos laterais, ao fim da tarde, quase à hora de Rosicler e a tia arrumarem as coisas e partirem, chegava um homem dos seus trinta anos, que se sentava com um grande bloco de papel e começava a desenhar. Era a hora das gaivotas se aproximarem de terra e o ruído que faziam era um elemento sonoro que indicava a proximidade do mar, da areia e da praia, era um som de coisas marítimas.  Uma tarde, pouco antes de partirem, o pintor chamou-a.
            «- Olá! Queres fazer um desenho? Dou-te uma folha…e lápis de cores…»
            Rosicler abanou a cabeça. Não. Não tinha vontade alguma de desenhar. Fora uma das coisas por que perdera o entusiasmo. Não era capaz de se sentar a fazer um desenho. Não disse tudo isto, naturalmente, limitou-se a abanar a cabeça.
            «- Então fica sossegada e deixa-me fazer o teu retrato… São só uns segundos.»
            E o pintor com traços firmes e seguros delineou um rosto a carvão com as feições perfeitas de Rosicler.
            «- Aqui está. - Disse ao fim de três ou quatro minutos. E acrescentou, brincando, - estás aqui na minha folha presa para sempre.»
            E como Rosicler permanecesse com o seu rosto sério e fechado, olhando admirada para o seu retrato no bloco de folhas, o pintor riu-se dizendo:
            «- Que arzinho tão sério, menina. Quantos anos tens?»
            Foi a tia que respondeu:
            «- Tem nove. Olá Adriano. Sempre por aqui ao fim da tarde? É minha sobrinha-neta. Está a passar umas férias em nossa casa. - e acrescentou baixo - há problemas e dificuldades com a família neste momento.»
            «- Gostava de lhe pintar o retrato. Posso?»
            «- Gostavas, Rosicler? Gostavas que o Adrino te pintasse o retrato? Olha que ele é um pintor famoso.»
            «- Famoso para os amigos. - Riu Adriano - Deixas Rosicler? Posso pintar-te juntamente com as gaivotas e o mar.»
            Rosicler encolheu os ombros. De facto, pouco lhe importava.
            «- Então está combinado. Amanhã virei mais cedo e fazemos um esboço a sério. Olha ofereço-te.»    E estendeu-lhe a folha onde o seu rosto de menina adulta estava desenhado.

            Durante uma semana, Adriano fez uma série de esboços para o retrato de Rosicler e aos poucos foi-se cimentando uma amizade entre ambos. Rapidamente o pintor percebeu que a sua modelo, a criança que posava docilmente à sua frente, distraindo o olhar pelas ondas do mar e pelo voo das gaivotas e às vezes absorta a olhar o planalto, era uma menina triste, sem ânimo e angustiada. Bondoso e atento, pensou que era necessário fazer algo para devolver àquela criança o brilho da infância, e um dia, inesperadamente, perguntou-lhe:
            «-Olha, Rosicler, gostavas de conhecer uma fada?»
            Rosicler olhou-o perplexa. No seu íntimo considerou que ele devia achar que ela era ainda mesmo muito pequena para acreditar em fadas ou em duendes. Nada disse, manteve apenas um simples olhar surpreendido.
            «- A sério. Uma fada a sério. Uma verdadeira fada. Uma fada como as das histórias.»
            «- Não há fadas. - foi a resposta seca de Rosicler, incomodada por ele achar que ela podia acreditar em tal coisa.
            «- Pois é mesmo esse, hoje, o problema do mundo. Já ninguém acredita em fadas, nem mesmo as crianças como tu. Sabes, isso é triste. Hoje só os pintores e os poetas é que acreditam.»
            «- Tu acreditas em fadas?»
            «- Claro, pois se até sou amigo de uma delas!»
            «- Onde é que ela vive?»
            «- Naquele farol, ali ao fundo no cabo de mar.»
            «- Levas-me a vê-la? - A pergunta pretendia ser um desafio da pequena Rosicler. 
            «- Claro. Quando quiseres. Queres mesmo?
            «- Sim. Vamos agora. Eu peço à tia.
            E Rosicler correu, pela primeira vez desde há muitos meses,  com energia para junto da tia.
            «- Tia, posso ir com o Adriano ao farol para conhecer a fada?
            «- A fada? No farol? O farol está desabitado. O que te anda a contar o Adriano?
            «- Nada de especial. Vamos até ao farol para a Rosicler conhecer a fada Luz. - Disse o Adriano que entretanto se aproximara.
            «- Ah! A Luzinha! Está bem. Mas não se demorem. Olha, Adriano, sendo assim, vou indo para casa. Podes passar lá e deixar a Rosicler, quando terminarem a visita?
            «- Com certeza, Mariana. Até logo então.
            E partiram. Adriano levava o seu estojo com os objectos de pintura e Rosicler apressava o passo, curiosa com a expedição ao farol, onde iria encontrar  a fada. Mil ideias lhe passavam pela cabeça. Seria, sem dúvida, belíssima a fada e quem sabe se até não atenderia a algum pedido seu, pois era justamente isso que as fadas das histórias sempre faziam. Subitamente, sentiu-se bafejada pela sorte. Mas este sentimento não era nascido de arrogância e convencimento, era antes um bem-estar profundo e indizível que correspondia a um despontar de confiança.

            Chegaram junto ao farol. Era um edifício alto e completamente desabitado. Rosicler estranhou ver tudo tão fechado; isso, justamente, adensava o mistério em torno da fada. Sim, tudo era possível. Pelas paredes do edifício serpenteavam trepadeiras verdes selvagens e o musgo escorriam das paredes com algumas rachas bem visíveis.
            «- Luz! - Chamou Adriano. - Sou eu Luz, onde estás?
            Silêncio. Fez-se um silêncio absoluto e só se ouvia ao longe o mar e os gritos espaçados das gaivotas que circundavam a falésia.
            Mas, então, por detrás do farol, como surgindo do nada, misteriosamente, apareceu uma velhinha de rosto muito enrugado, como que rendado, de pele muito velha e morena, toda vestida de preto. Trazia na mão um cesto largo, onde abundavam variedades de plantas. A velha parou, olhando-os com um sorriso aberto e amistoso.
            «- Então meu pintor, e quem é esta menina? - Perguntou numa voz velha e doce.
            «- Olá minha fada. Esta é a Rosicler. A Rosicler não acredita em fadas e eu resolvi apresentar-lhe uma verdadeira fada. E por isso aqui estamos. Estamos a tomar muito do seu tempo?
            «- Ora meu pintor, bem sabes que tenho sempre todo o tempo do mundo. Não há que ter pressa para nada. - E virando-se para Rosicler, olhou-a demoradamente e disse carinhosamente - És uma menina que vem da cidade, muita coisa mudou na tua vida recentemente e estás perturbada, porque não esperavas que existisse mudança no teu mundo.
            Rosicler admirou-se, com estas palavras. Permanecia estática, não era a fada que ela imaginara, mas não deixava de sentir que aquela senhora era misteriosa e sim, de facto, parecia verdadeiramente uma fada já velhinha, talvez, mas, ao mesmo tempo, como verdadeira fada, era alguém intemporal sem idade definida.
            «- Sentemo-nos aqui numa pedra, neste recanto. - disse com voz firme e segura a mulher.
            «- Fada Luz, - pediu Adriano, - fala um pouco connosco.
            A mulher semicerrou os olhos por alguns segundos devagar. Todo o seu corpo transmitia paz e acolhimento. Rosicler permanecia muito quieta na expectiva de uma espantosa revelação. Então, a mulher devagar, demorando as palavras, e  com uma respiração muito cadenciada, disse olhando profundamente o azul quase sereno do mar em volta, como olhando para além do horizonte:
            «- No dia em que tu decidires não  pedires as coisas  de que gostas, mas gostar das coisas que  te acontecem, descobrirás que não há lugar para o medo.
            E a mulher continuou, agora massajando ambas as mão uma na outra num movimento ritmíco e preciso.
            «- Devemos aprender a esperar. Devemos ser pacientes  Anda, sente, fala e comporta-te como se fosses inteiramente livre e então darás conta de verdadeiras mudanças acontecendo na tua vida. Nada fará a menor diferença se tu fores um papagaio; um papagaio é sempre um papagaio. Vive e ama, mas nunca contra a liberdade. A liberdade deve permanecer o valor supremo. E a mudança à nossa volta é a expressão da liberdade dos outros e do próprio universo. Se não  nos sentirmos envolvidos naquilo que estamos a fazer, é melhor não fazer nada. Apenas fique em silêncio, em silêncio absoluto. Deixa a paz descer sobre ti, e então a verdade da existência é tua.
            A mulher parou de falar, mas era como a sua voz continuasse a pairar no espaço e fizesse com que aquele se tornasse um não-lugar de existência. Adriano sorria com comprazimento interior. E então a mulher virou-se para Rosicler:
            «- Disse o Adriano que não acreditas em fadas, é verdade?
            «- Não sei - respondeu timidamente Rosicler.
            «- É uma pena se não acreditas. Eu sei histórias imensas de fadas. Talvez que na cidade seja tudo diferente. Não há tempo para contar uma história e não há talvez também já vontade para ouvir. Isso é algo que e perdeu com os tempos. Antigamente todas as crianças ouviam historias e sabiam-nas de cor para as contarem mais tarde aos filhos e aos netos. Hoje é tudo muito rápido. As pessoas queixam-se de que não há tempo. Não há tempo para fadas…
            «- Não existem fadas. - atreveu-se enfim a dizer Rosicler.
            «- Acreditar em fadas é uma conquista, é o resultado de estar relaxado consigo mesmo, de ser simplesmente o que se é.
            E continuou:
            «- Não se vão embora, sem antes eu dar um presente a Rosicler. - E a mulher levou a mão ao bolso e tirou de lá uma pedra azul muito polida e bonita. Um azul extraordinariamente perfeito na cor que quase parecia um pedaço de céu.
            «- Quando não te sentires bem e estiveres sem forças, sopra docemente nesta pedra e diz apenas uma palavra: « Nâo». Verás que o «não» se torna uma palavra mágica  e te dará tudo o que tu precisares naquele momento. Se te sentires triste e abatida e sem confiança, repete também com segurança «não». Verás que esse «não» vem do mais profundo do teu ser e te transforma dando-te aquilo que mais precisas naquele momento. Quando quiseres, vem visitar-.me; eu estou sempre por aqui…
            Despediram-se. Adriano e Rosicler partiram silenciosos. Era já tarde. O sol estendia os seus raios muito alaranjados sob o horizonte. Rosicler guardava na mão a pequena pedra e recordava fragmentos das palavras da fada. A Luzinha, como lhe tinha chamado a tia, era como uma doce fada, sentia mesmo que, se  existissem fadas, elas deveriam ser exactamente como aquela. O mesmo rosto, a mesma expressão, a mesma voz.
            Subitamente, deu-se conta  que aquela já sua tristeza profunda inundava o seu rosto, então pegou na pedra devagar, soprou, e disse apenas com voz firme: NÃO.




Comentários