O Rapaz das Mãos de Prata



            Junto à margem do rio, havia grandes choupos e salgueiros, grandes carvalhos e pinheiros, plátanos e sobreiros. Havia, na horta, uma correnteza de pés de morangueiros e havia agriões, alfaces, ervilhas, favas e espinafres, plantados em Dezembro, a despontarem no solo. Havia, no jardim, amores-perfeitos, hortênsias, jasmins, rosas e lírios. E havia ainda vasos de pedra rectangulares, cheios de terra, de onde brotavam túlipas vivazes muito vermelhas que alegravam a frente da casa.
            Era um terreno enorme, plantado mesmo junto à margem, e a casa, tal como o rio, tinha o nome simples de “Ave” inscrito em letras muito escuras num painel de azulejos brancos. Um goivo lilás ornamentava cada canto do painel de azulejos e o nome “Ave” parecia esvoaçar para além daquele espaço e mergulhar na correnteza do rio que, sempre docemente, se encaminhava para o mar.  
Todos os dias, ainda de madrugada, o rapaz saía da casa a correr e desaparecia no jardim onde via o despontar do sol, no cimo do monte, na outra margem, sentado nos ramos fortes de algum carvalho secular. As mãos, quase sempre nos bolsos, escondiam os dedos disformes, sensivelmente azuis-escuros, engelhados, com que, sem explicação, tinha nascido. Só ali no jardim se sentia bem, longe dos olhares das outras pessoas. Não gostava que olhassem para as suas mãos tão escuras e de pele macerada como as de um velho. Comparava-se continuamente com as outras crianças. E secretamente, para si só, desejava ser outra pessoa. Ser outro que não ele. Ser diferente. Ser um rapaz de mãos esguias e delicadas, com uma pele muito macia, fina e branca. Mas tinha umas mãos velhas, como se tivessem uma centena de anos, num corpo franzino de criança. Tinha seis anos. Para a semana faria sete. Em Setembro ia para a escola. Dura provação para uma criança que não queria que outros a olhassem e que escondia sempre as mãos nos bolsos. Ou então, quando saía com os pais, calçava luvas, mal se começavam a sentir os primeiros frios. Fora há dois anos atrás que começara a ter consciência deste facto, através de comentários insistentes de outras crianças no parque onde costumava, dantes, brincar. Mas, na sua memória, as palavras que ouvira estavam tão vivas como se tivessem sido proferidas há poucos instantes. A dor. As lágrimas. Nem a avó tinha mãos tão velhas!
Agora, tinha apenas a amizade das flores, das plantas e das árvores. Quando tocava ao de leve, com carinho, numa planta, como por magia, se a planta não estava viçosa, ela renovava-se e renascia. Por isso, habituara-se a estar sempre sozinho no jardim e só às vezes corria ao longo da margem do rio Ave, até se cansar, quando lhe parecia que o espaço em volta da casa não era suficiente para o tanto que desejava saber e conhecer.
Mas, um dia, tudo mudou.
Como sempre, levantou-se, uma manhã, antes de toda a gente da casa. Meteu duas côdeas de pão no bolso do casaco, que vestia apertado por causa da aragem fria, e saiu correndo para o fundo do jardim, em busca de uma árvore antiga, que lhe servisse de poiso. Mas, então, tropeçou numa pedra e caiu mesmo em frente de uma roseira e apercebeu-se, pela primeira vez, de uma espécie de canto suave, assim como se fosse um murmúrio, que se espalhava por todo o lado.
Não sabia que canto era aquele. Depois começou a perceber que havia sons distintos e diversos. Era uma melodia, um garganteio, mas também era como que uma fala, como que uma voz. Ouvia distintamente. Agora um som e mais outro e outro e outro. Percebeu, então, que todas as plantas sussurravam em surdina. As plantas, as árvores, os arbustos com flores. Sem perceber o que ouvia, sentia que havia uma comunhão perfeita, uma harmonia, em toda a natureza à sua volta. Será que falam mesmo?, interrogou-se admirado. Resolveu não se mexer da posição em que se encontrava. Limitou-se a escutar e a ouvir. Primeiro era um som ondulado que percorria o jardim. Depois um murmúrio plangente e mais agreste. Depois uma ou outra risada suave.
Pensou que toda a natureza à sua volta se preparava para festejar o nascer do dia, as rosas sacudiam o orvalho das pétalas e das folhas, e dos troncos das árvores, escorria uma humidade fria que se entranhava na terra.
Ainda não nascera o sol. Faltariam alguns minutos apenas, mas uma cor laranja já inundava o cimo do monte. E as estrelas desapareciam lentamente no céu.
Agora percebia. Durante a noite, o gemido que sempre ouvia, os sons que o despertavam e o faziam levantar sempre tão cedo, eram na verdade a melodia do canto das plantas, a fala da natureza.
Levantou-se do chão e, despercebidamente, sem querer, tocou ao de leve num lírio cor de laranja. Ele estremeceu. Encolheu-se todo. Revolveu as pétalas, e, de seguida, falou:
- Bom dia! Que delicadeza de mãos! Tens um toque suave. Um toque sem tempo. Um toque eterno.
- Desculpa… que disseste?
O rapaz sentiu-se perplexo. As suas mãos! As mãos que ele escondia! As mãos que quase não olhava!
- Sim. Há mil anos que não sentia o toque dumas mãos assim. Só podes ser o velho jardineiro que sempre cuidou de mim.
- Mas nós não temos jardineiro! Ninguém trata do jardim. Ele nasce, cresce, sozinho. A água das chuvas revigora-o. O orvalho da noite limpa-o. O calor do Verão torna-o mais verde. Os pássaros e o vento levam as sementes. Ninguém trata do jardim. Só a mãe cuida das túlipas vermelhas nos vasos da frente da casa. Repara na quantidade de dentes-de-leão espalhados à nossa volta!
- Estranho. Acabei de sentir as mãos do velho jardineiro. Quem és tu? O teu toque é exactamente igual. Mãos tão antigas como o tempo…
- Eu sou apenas um rapaz que vive nesta casa. Não sou jardineiro. Tenho seis anos. E, como te podes lembrar de algo que aconteceu há mil anos? Ninguém vive mil anos! Nem eu e muito menos tu, que és uma flor, um lírio!
O rapaz disse tudo isto com um ar espantado, embora não se mostrasse surpreendido por estar a falar com uma flor.
- Como te enganas. Em cada semente, transporto a memória do passado desde a primeira flor até hoje. Eu sou também a primeira flor que já nasceu sobre a Terra. Sou igual a ela. E, como te digo, há mil anos que não sentia um toque assim. Vou-te contar uma história…
- Mil anos…é muito tempo, não é? – Interrompeu o rapaz, querendo-se assegurar que estava a compreender bem. – A minha avó tem noventa e quatro… são muitos anos! É velha. Mas mil anos?!
- Há mil anos atrás, para ti, é muito tempo, para mim é só um instante, porque para mim o tempo é eternamente presente. Para mim é sempre agora. Queres ouvir uma história sobre nós, flores? Há mil anos ou mais, havia um príncipe que tinha mãos de prata… Mas espera… Vem aí o dia. Agora não posso falar mais. É altura de mergulhar na morte. Também apenas um breve instante.
- Espera! Quando volto a falar contigo?
- Vem logo à noite. Então contar-te-ei a história.
E o lírio ficou silencioso. Toda a natureza ficou em silêncio. E só o sopro do vento na ramagem das árvores lembrava ao rapaz a melodia suave que percebera pela primeira vez nessa madrugada.
Durante todo esse dia o rapaz não cabia em si de aturdimento. Nem sabia o que havia de pensar: tudo aquilo fora real, ou tinha imaginado a conversa com o lírio? De resto, não esperara pelo amanhecer e voltara para casa, espantado com a revelação de um segredo da natureza. Que extraordinário momento! Sempre os dias lhe pareceram longos, de mãos fechadas nos bolsos, e as noites intoleráveis. Desejava sempre ora que anoitecesse ora que amanhecesse, pois nunca se sentia inteiro naquilo que estivesse a fazer. Desde que se lembrava, vivera sempre sem saber como se ocupar, saltando de uma actividade para outra, num corre-corre constante, e hoje, apesar de um contentamento, havia em si uma ansiedade dilacerante que ainda mais o desassossegava. O certo é que, nos poucos minutos que estivera a falar com o lírio, tinha mergulhado numa espécie de paz; não sabia se falara com a flor durante uma longa hora, ou um dia comprido, ou um brevíssimo instante. Nunca tinha sentido nada assim. Perdera, por completo, a noção de um tempo que se arrasta; e agora quase não conseguia esperar que fosse novamente noite para experimentar outra vez aquela sensação tão simples.
E a história?
Um príncipe com mãos de prata! Que extraordinário! Deviam ser belas, divinas, essas mãos… tão diferentes das suas…
Nessa noite, havia uma lua brilhante a iluminar o céu, e quase parecia que era de madrugada; sem ninguém da casa dar conta, escapou-se para o jardim. Mas, na imensidão das plantas, não sabia qual fora a flor com que falara. Estava hesitante. A mesma melodia, que, agora atento, ouvia distintamente, invadia todo o espaço e parecia ressoar nas águas límpidas do rio. Rio, ave, lua… flor? Qual seria? Qual era a flor tão especial com a qual falara?
Afoito, resolveu dirigir-se ao canteiro dos lírios. E disse:
- Olá! Sou eu de novo.
- Olá, – responderam os lírios em coro.
- Estava a falar com um de vós. Qual seria?
- Qual? Tanto faz. Podes falar com qualquer um de nós. É igual.
- Não. Eu quero falar com o lírio que sabe a história do príncipe das mãos de prata.
- Todos sabemos. Toda a natureza sabe. A lua sabe. O sol sabe. O rio sabe. Os canteiros sabem. Todos sabemos.
- Como assim?
- Não és tu o rapaz que tem umas mãos de toque suave?
- Como sabeis?
- Todos sabemos. O que um sabe, todos sabem. Nós não pensamos. Nós sentimos. O lírio não te disse isso?
- Mas todos falam. Se falam, pensam…
- Não. Eu falo porque sinto. Sinto as tuas mãos e sinto a tua imensa tristeza doce no teu toque suave. Sinto a tua solidão e o medo que tens da vida.
- Eu não disse nada à outra flor. Não disse que estava triste…
- Nem era preciso. Ela sentiu. E quando ela sentiu, toda a natureza sentiu e assim soube. Sabemos tudo de ti.
- Sabem?!
- Sim. Naturalmente. Tu tens as mãos do velho jardineiro de há mil anos do jardim do príncipe das mãos de prata!
- Eu?! Mas eu ainda nem tenho sete anos!
- Sim. Mas o toque é o mesmo. Por isso a flor falou contigo.
- E como é então a história?
- Estás preparado para ouvir?
- Sim.
- Então, repousa a cabeça entre os braços e senta-te na erva macia.
E, suavemente, numa voz de cântico doce, um dos lírios contou:
«- Há mil anos, ou mais, o príncipe das mãos de prata vivia num palácio de cristal nos confins do mundo. Tinha um jardim de lírios e de enormes bétulas verdejantes. Diariamente dava o seu passeio pelo jardim e ouvia sempre o murmúrio dos lírios que não gostavam da cor cinzenta das suas pétalas. Diziam eles: - Quem nos dera ter outra cor. Sermos altos, robustos, verdejantes, como as bétulas, e termos um manto de folhas suave, e permanecermos para todo o sempre! O príncipe ouvia diariamente estas queixas. Naquele tempo, as flores não adormeciam de dia e, assim, continuamente se queixavam naquele jardim do palácio. Então, um dia, o príncipe foi ter com o velho jardineiro de oitenta e seis anos (que tinha uma mãos iguais às tuas) e disse-lhe: - Já não posso ouvir as queixas destas flores. O que havemos de fazer? O jardineiro respondeu ao príncipe: - Se não nascerem de novo, não há nada a fazer. Podemos arrancar toda a vegetação. Mas, quando brotarem outra vez, trarão todas as queixas do passado. Podemos queimar o jardim, mas, quando brotarem outra vez, quererão de novo ser outra coisa diferente. Qualquer dia quererão ser o sol ou a lua, ser um rio, uma ave. Não conheço senão uma solução. – Diz, implorou o príncipe. O jardineiro continuou: – É bastante simples. Guardo sempre comigo sementes de lírios e antes de as lançarmos ao solo, deixá-las-emos sete dias nas tuas mãos. Com o calor, pensarão que estão no seio da terra e florescerão. Então, guardamo-las na sala mais escura do palácio embebidas num algodão húmido. As raízes vão-se desenvolver, mas a planta nunca chegará a nascer. Surpreendido, o príncipe perguntou: – E o que acontecerá, então? Mas o velho jardineiro apenas disse: – Não te preocupes, príncipe. Tu tens mãos de prata! E as minhas próprias mãos, velhas, enrugadas, cansadas, farão o resto.
«Durante sete dias, o príncipe transportou nas suas mãos três minúsculas sementes. E quando as raízes se soltaram, o velho jardineiro, amorosamente, com as suas mãos engelhadas, envolveu-as no algodão molhado e levou-as para a sala mais escura do palácio. Todos os dias, o velho e o príncipe visitavam os lírios. E viam o seu esforço tremendo para despontar. Observavam a sua labuta para crescer. Viam a sua ânsia para desabrochar. Mas era em vão, sem alimento suficiente, definhavam.
«Então, passados catorze dias, o velho jardineiro disse ao príncipe: - Está na hora de plantarmos as sementes em terreno adequado. Como não me posso dobrar,   peço-te que, com as tuas mãos delicadas, caves fundo na terra, pois vamos enterrar as sementes.
«O príncipe assim fez. Enterrou as sementes. E as suas mãos delicadas ficaram negras e sujas de tanto remexer a terra. Era necessário cavar muito fundo, e aquelas mãos brancas ficaram de uma cor muito escura para sempre. Mas o príncipe olhava com orgulho para as suas mãos, consciente da grandeza da tarefa que estivera a realizar. Era de noite. E o luar espalhava uma claridade ténue. Ao longe, como num sussurro permanente, ouviam-se os lírios cinzentos a queixarem-se. Pois não paravam, fosse qual fosse a altura do dia ou da noite. Mas então, passados sete dias, despontou um caule novo do solo. E mais outro e mais outro. Logo ao princípio não se observava nenhuma diferença. Mas, subitamente, o lírio, que nascia, tinha pétalas brancas. E o outro amarelas. E o outro vermelhas. Os lírios cinzentos olhavam espantados estes novos lírios à sua volta. Como era possível que um lírio fosse diferente – no fundo, aquilo que eles, lírios cinzentos, sempre desejaram? Mas estes lírios brancos, amarelos, vermelhos, não só eram diferentes na cor, como se comportavam diferentemente. O amor e o ardor, em que tinham sido gerados, criaram neles uma outra natureza. Sim, sentiam o deslumbramento do milagre de serem lírios e sentiam a sua unidade com os rios, os céus, as aves, as árvores, o sol e a lua. Cada um deles tão único, tão singular, mas ao mesmo tempo de natureza tão idêntica a todo o universo. O príncipe das mãos de prata rejubilava de satisfação. Que aprazíveis eram agora os seus lírios! E como todo seu jardim crescia em graça e em harmonia! Que belas, agora escuras, se tinham tornado também as suas mãos! Que contentamento e que alegria! Pensar que fora ele que nas suas mãos de prata guardara e gerara estas novas sementes! E que, escavando, as enterrara profundamente no solo! Eram belos estes pensamentos. Mas, mais bela era ainda a consonância à sua volta. O velho jardineiro, como sempre fizera, continuava no seu trabalho diário a acariciar todas as plantas e agora, pela primeira vez, sabia que as flores sentiam o significado profundo do seu cuidado. Esta era a sua linguagem e a sua forma de comunicar com as flores num afago doce de aconchego. Que extraordinário mistério. Mãos de prata me geraram, mãos velhas me agasalham, diziam simplesmente os novos lírios. E, docemente embalados numa profunda quietude, começaram a adormecer durante o dia, fazendo com que toda a natureza à volta no jardim adormecesse também para despertar todas as noites a par com as primeiras estrelas no céu.
«E dali, dos confins do mundo, daquele simples jardim do palácio, partiram milhares de sementes de flores desde há mil anos ou mais. E povoaram a terra inteira. E destes lírios despontou uma nova e deslumbrante natureza. Dali nasceu uma nova terra.
- Que extraordinário! – Disse apenas o rapaz quando a história terminou de ser contada.
Mas, logo de seguida, interrogou:
- E as flores não se tornaram a lamentar?
- Lamentar? Mas como é possível, depois de aprender a sentir?
- Mas eu… já viram as minhas mãos?
- Sim. São belas as tuas mãos. São mãos ternas como as do jardineiro… são talvez mãos de prata como as do príncipe. Já experimentaste acolher nelas uma semente? Faz isso.
- Não sei se poderei. As minhas mãos são engelhadas e feias. Não são belas como as do príncipe. Quem me dera ter umas mãos diferentes!
- Passa a tua mão na tua face. O que sentes? Fecha os olhos. Diz-me.
A custo, o rapaz fechou os olhos. Respirou longamente e passou, como pela primeira vez, a mão no rosto. Primeiro a palma da mão. Depois as costas das mãos e os dedos um a um. Sentiu-se bem. Sentiu aconchego. Sim. Sentiu calor. A lua muito redonda e cheia espalhava agora os seus raios sobre o jardim e o rapaz abriu os olhos. Olhou as mãos e viu reflexos de um azul prateado sobre os dedos.
- O que sentiste?
- Senti calor. Senti uma doçura morna e aconchegante. Serão belas, as minhas mãos?!
- Experimenta acolher uma semente. Fechas bem a mão e não abandonas a semente durante sete dias. Quando as raízes começarem a crescer, colocas a semente na terra. Experimenta.
O rapaz assim fez. Durante sete dias acolheu uma semente de lírio na concha da sua mão. E estremeceu a semente, desejando que a memória daquela sementinha fosse igual à de todas as flores do seu jardim. E com enorme expectativa aguardava que ela pudesse falar consigo tal como as outras flores.
À noite do sétimo dia, quando as raízes já despontavam, e era bem certo que a semente se transformara, enterrou-a na terra, num vaso fundo, que escondeu no meio das madressilvas do jardim. Não queria que ninguém da casa observasse a sua flor. A flor que ele ajudara a nascer como na história nasceram os lírios brancos, amarelos e vermelhos aconchegados nas mãos de prata do príncipe.
Passados catorze dias despontou uma haste. Depois, nasceram as pétalas. Era uma noite de lua cheia. Que belo luar para nascer!, pensou o rapaz, e só então observou, era um lírio de pétalas verdes que florira. E o rapaz não cabia em si de contente. Nunca vira outro de pétalas iguais. Era um verde resplandecente que lembrava as folhas viçosas dos castanheiros. Olhava para o seu lírio novo e parecia-lhe uma flor antiquíssima com mil anos ou mais.
- Olá, - disse o rapaz. – Aguardava que despontasses. Que belas pétalas as tuas! São verdes como nenhum outro lírio tem!
- Olá, - respondeu o lírio. - É verdade. Mas que importa a cor, ou a forma? O que interessa é aquilo que eu sou. Sou uma flor. Estou em harmonia com toda a natureza. Estou em comunhão com o sol, a lua, as estrelas… e contigo também… Há um laço entre nós que persistirá para sempre.
- Mas tu vais viver apenas uns dias. Se calhar amanhã já murchaste. Nunca se sabe.
- Tens aprendido muito pouco. Olha, queres experimentar um momento eterno? Fecha os olhos e sente. Sente o som da natureza…das flores, das árvores, dos astros e das estrelas. Tudo tem um som. Tudo à nossa volta fala connosco. Se vês, se ouves, se sentes, podes sempre aprender. Qual é a tua dor? Queres-me dizer por que sofres?
A amargura de sempre voltava ao olhar do rapaz e disse, numa voz muito ténue:
- Queria ter outras mãos…
- Querias?! - Disse espantado o lírio. - Como é isso possível? Não me geraste? Achas que outras mãos teriam podido fazê-lo? Só mãos como as tuas podem gerar uma semente de flor! Queres de facto ser diferente?
- Não sei …
- Olha à tua volta. Olha com os olhos que tens. Observa a natureza. O que achas, se o carvalho quisesse ser rosa, por causa da fragrância? O que achas, se o pinheiro quisesse ser violeta, por causa da cor? E se a lua quisesse ser sol pela luz e pelo calor? E se o rio quisesse ser ave para voar? E se a ave quisesse ser flor sem chilrear? E se a flor quisesse ser criança? O que achas que aconteceria?
- Não sei…
- Não havia universo nem havia harmonia. Não havia ordem nem beleza. Tudo definharia e morreria como no jardim do príncipe definharam os lírios cinzentos. O queixume é uma ausência de amor e sem amor nada há, não há vida. Novos lírios puderam nascer, porque houve um príncipe de mãos de prata que amou uma semente, mesmo sem saber o que aconteceria. Tu sabes bem o que é transportares na mão uma semente e vê-la despontar. É belo. Também tu não sabias o que aconteceria à semente que agasalhaste. E, repara, as minhas pétalas são verdes! Haverá mãos mais belas do que estas que geram a vida?
- Mas eu queria apenas ter umas mãos iguais às de todos os rapazes…
- Cada um tem as mãos que tem. As tuas mãos são conchas macias, velhas como o mundo, belas porque transmitem amor. E amor é vida. Assim são as tuas mãos. Todos somos diferentes. As mãos de cada um são as mãos de cada um. Cada ser é único. És o rapaz das mãos de prata, que, como o príncipe, aconchegou uma semente, e deu uma nova vida de harmonia à terra inteira. Nunca mais ninguém ouviu o queixume de uma flor. Apenas se ouve o som murmurante e belo da natureza que ondula pelo ar espalhando uma harmonia suave. Sem as tuas mãos eu não tinha nascido. Sou um lírio de pétalas verdes. Pode parecer estranho! Sinto-me único e não diferente. Não me orgulho da minha cor nem invejo a cor dos lírios brancos ou amarelos. Sou verde, porque o teu amor me fez transformar num lírio de uma nova cor. De novo um milagre aconteceu. Amanhã, podem haver mais lírios como eu ou posso continuar a ser único. Mas que importa? Na natureza cada um tem o seu papel.
- E qual é o teu papel, tu, lírio das pétalas verdes?
- Diz-me quanto tempo passou desde que começámos a falar?
- Não sei. A mim parece-me um instante… Ou, então, não, muito tempo! É como se estivéssemos a falar há muito tempo. É como se te conhecesse há mais de mil anos e esta conversa não tivesse sido nunca acabada nem interrompida.
- Estás a ver. Começas a sentir. É isso mesmo. Que importa que papel eu vou ter ou tenho? Que importa há quanto tempo aqui estamos? Sempre estaremos presentes no afago entre umas mãos de um velho ou de uma criança e uma flor. O instante que estamos a viver está representado no passado e no futuro. É eterno. Na memória que trazemos ele está lá presente. No sonho que sonhamos ele se projecta eternamente. Este instante está vivo no passado. Está vivo no futuro. Porque estamos inteiros a viver este instante exacto, este momento está vivo. Estamos aqui tão presentes que é como se não existisse mais o tempo e tudo fosse para sempre. Talvez que eu apenas tenha nascido para te dizer estas palavras que vêm de há mil anos do passado e ecoarão por mais mil anos no futuro.
O rapaz cerrou com força os seus olhos e encostou ambas as mãos no coração.
- Sinto! Sinto que é verdade o que dizes. Olha, sinto as minhas mãos. São belas as minhas mãos! Como poderia desejar ter umas mãos diferentes? Como poderia desejar ser doutro modo do que sou? Eu sou. Sou único como tu, lírio verde. Mas sou também como todos os rapazes da minha idade, desde há mil anos ou mais.
- Sim. És único. Mas ao mesmo tempo és a multidão dos seres do inteiro universo. És uno com a vida. Sentes e falas com a natureza. Conheces as plantas. Aprendes com a vida. Tu és tu. E tu és a Vida. Se te negasses, estarias a negar a própria existência. Negavas o universo. Negavas-me também a mim. Negar-te-ias a ti. Isso não seria amor. Só o amor gera vida.
- Sim. Sinto isso como uma verdade profunda…
Em volta começava a despontar o sol. E a natureza ia ficando silenciosa. O lírio emudeceu e o rapaz despediu-se da flor afagando-lhe as pétalas verdes e regressou a casa.
Quando chegou, entrou no quarto mas não se deitou. Ficou sentado em cima da cama a observar as mãos e então sentiu profundamente que as suas mãos eram diferentes das dos outros rapazes, tal como uma rosa amarela é diferente de uma rosa vermelha. Tranquilamente adormeceu e no seu sonho, de mãos dadas com o príncipe das mãos de prata, ouviu distintamente o príncipe dizer-lhe, sorrindo, que na existência o que contava era o amor que cada ser, tão igual ou tão diferente, era capaz de transmitir. Esse era o contributo de cada um para com a vida… tão ínfimo como guardar com afeição na concha da mão uma semente ou falar por um instante com um lírio num jardim.



  

Comentários