Personagens:
Contador de Histórias
Rapaz
Rapariga
Barqueiro
Caminhante
................................................................................................
Contador
Eis agora a história
que contarei
sem nenhum invento.
Rapariga
-História de encantamento?
Rapaz
-História de outro tempo?
Contador
É uma simples história
que guardo na memória.
Rapariga
-De sereias e piratas?
Rapaz
- De tesouros de oiro e
prata?
Contador
Não. Não tem maravilhas.
História é de recordar.
É uma história, no fundo, do
mar.
Não
tem que admirar.
Rapariga
-
Mas há
sempre um encantamento!
Contador
Talvez se acrescente
Se houver invento.
Ouvi, então.
Era um barqueiro
forte, trigueiro,
que
nada temia...
Rapariga
-
Nem a
noite?
Rapaz
-
Nem o dia?
Contador
Nada a ele o assustava.
Nem a noite o quebrantava
Nem a chegada do dia.
Rapariga
-
E o que
fazia?
Rapaz
- Pois se era barqueiro
no seu barco navegava!
Rapariga
-
Mas por
onde viajava?
Contador
A lugar nenhum ele ia.
A sua barca era a passagem
apenas de margem para margem
no rio onde vivia.
E assim ficava
dia-a-dia.
Rapariga
-
Sempre, sem
parar?
Contador
Sim.
Rapaz
-
E não
dormia?
Contador
Não. Lançaram-lhe um
encantamento.
E sem outro mais tormento
que acertasse de saber:
de criança até morrer
na sua barca não pararia.
De um lado ao outro iria
sempre sem se deter.
Rapaz
- Sempre. Sem parar?
E sem mais o que fazer?
Assim
sempre até morrer?
Rapariga
-
Foi mesmo
uma bruxa malvada!
Contador
Não. Não senhor. Foi uma
fada.
Que quisera que o barqueiro
Fosse eterno mensageiro.
Por isso o prendeu à margem
e no feitiço que lhe lançou
deixou-lhe apenas a imagem
do sonho que em si mesma
achou.
Mas um dia um viajante
Chegado de lá diante
postou-se na margem do rio.
Bom dia, o barqueiro lhe
disse.
Caminhante
« Bons dias.
Barqueiro
« Donde vens?
Caminhante
« Sou caminhante.
Barqueiro
« Para onde caminhas tu?
Caminhante
« Eu pelos caminhos vou.
Barqueiro
« Mas então tu só caminhas?
Não sabes para onde vais?
Caminhante
« E tu que sabes mais?
Se da margem tu não passas,
Não será a mesma coisa?
Barqueiro
« Bem o dizes... Mas como o
sabes?
Caminhante
« Se o digo, logo o sei.
Rapariga
-
Como o
sabia?
Rapaz
-
Como o
sabia?
Contador
Não sei. Mas nestas lendas
sempre há mistérios
que são casos bem sérios
e difíceis de saber...
Rapariga
-
Mas se
ele o disse.
Rapaz
-
E se ele
o sabia.
Contador
Alguém lho diria.
Rapariga
- Mas quem?
Rapaz
-
Quem?
Contador
Ora, só pode ter sido a fada
(a que chamas bruxa malvada)
A fada dos caminhos
que encontrou o viajante
e lhe segredou num instante
a quem ele encontraria.
Rapariga
-
E porquê?
Contador
Pois o viajante é bem certo
que
por missão caminhava
Rapariga
-
Sem saber
para onde ia?
Rapaz
-
Sem saber
por onde andava?
Contador
Por certo não tinha querer
Só sabia que não podia
de chão firme se perder.
E sempre que chegava à margem
e o chão aí lhe faltava
só tinha de permanecer
e a estrada retomar.
Rapariga
-
Era um
feitiço.
Contador
Pois sim, claro, evidentemente.
E o feitiço dizia:
Tomarás a estrada
tua única via
sem nunca te perderes.
Rapaz
-Então não podia mudar de
margem?
Contador
Não senhor não podia.
Rapariga
-E o feitiço do barqueiro
O que dizia?
Contador
Tu sempre serás barqueiro
Nunca terra pisarás,
nem tão pouco dormirás.
E sempre que te moveres
será de margem para margem.
Rapaz
- Estava então preso o
barqueiro
Tanto à barca como ao rio.
Não se podia mover.
Contador
Não não estava
Só que não o percebera.
Rapariga
- E a história como continua?
Barqueiro
« Diz-me viajante, se tantos
caminhos correste
Que sabes, que viste, que
aprendeste,
em cada margem onde
estiveste?
Caminhante
« Muito vi e conheci
Mas nunca nova margem
descobri.
Barqueiro
« Margem é o que sempre há.
Não vês tu este meu rio?
Se há o lado de cá, o de lá
também haverá.
Caminhante
« Poderá ser. Mas como o
saber?
Barqueiro
« Ora essa. Essa é boa.
Não havia então barqueiro
na margem onde estiveste?
Caminhante
« Não . Nada. Só água,
líquida, gelada
Era tudo o que havia.
Nem a outra margem se via.
Barqueiro
« Rio tão grande não pode
haver.
Caminhante
« Não é rio. Mar se chama
e tem marés.
Barqueiro
« Nunca ouvi. Nem sabia.
Bem gostava de chegar
a essa margem de que falas.
Aí te mostraria como ao outro lado iria.
Caminhante
« Como pode isso ser?
Se há a força dos ventos
que empurram de volta para
cá.
Nunca lá tu chegarias.
Barqueiro
« Pois havia de chegar!
Não te disse, pois o sabias,
minha missão é esta:
correr de margem para margem
sem fazer qualquer paragem.
Andar de cá para lá.
Caminhante
« E como lá tu chegarias?
Que caminho tomarias
não errando em te perderes?
Barqueiro
« Se a tua sina é caminhar
E a minha alcançar.
Havemos de partir e juntos
conseguir.
O caminho me indicarás
e a margem alcançaremos.
Rapariga
-
Irão
chegar?
Rapaz
- E não terão medo?
Rapariga
-
Qual é a
margem para onde vão?
Contador
Claro que chegarão.
Há um ponto nesta história
que não contei ainda aqui.
É que o barqueiro não dormia
mas toda a noite sonhava
e sempre constante se via
num rio imenso sem margens.
E embora não percebesse
Nunca achou que se perdesse.
Rapariga
-
Com o mar
sonhava então..
Rapaz
-
Só não o
conhecia.
Contador
Água era tudo o que havia.
Se ao céu os olhos lançava
novos oceanos se repetiam
em rios imensos sem margens.
Rapariga
- Mas margem sempre há!
Rapaz
-
Ele o sabia
bem.
Rapariga
- Todo o rio que conheço
margem direita e esquerda
tem.
Rapaz
-
E por
isso a terra se sustém.
Contador
A história aqui acaba.
De memória não sei mais.
Rapariga
-
E o que
fizeram?
Rapaz
-
Diz lá.
Contador
Ora é claro que navegaram
e no oceano entraram
e a margem alcançaram.
Rapariga
-
Mas e
depois?
Rapaz
-
Depois?
Contador
Ninguém houve que contasse.
Rapariga
-
Tanto tempo passou ...
Rapaz
-
... sem
ninguém que soubesse...
Rapariga
- ... nem notícias trouxesse?
Rapaz
-
E se se
perderam?
-
Caminhante
- No mar ninguém se perde
nem se perdeu.
Rapariga
-
Quem és tu?
Caminhante
-
Eu sou o
que caminha.
Rapariga
- Também na história que
contaste
um caminheiro havia.
Rapaz
- O que falou ao barqueiro
e o levou pelo rio fora
até chegar ao mar
para a outra margem tomar.
Rapariga
-
Onde está o
barqueiro?
Caminhante
-
O seu
barco ao fundo foi.
Rapariga
-
Pobre, pois
se afogou.
Rapaz
- Porque lhe disseste para
ir?
Mais valia ter ficado.
Rapariga
-Pois ele ,valente ousado,
se em sonho navegava,
o mar já conhecia!
Rapaz
-
Que pena
tenho do barqueiro!
Caminhante
-No fundo da água achou
outras margens como no rio.
Rapariga
-
Como pode
isso ser?
Contador
Foi a fada madrinha
que um outro feitiço tinha
e de novo o enfeitiçou:
para que sempre que sonhasse
nova margem alcançasse
e novo mundo descobrisse.
Rapaz
- E se outro feitiço houvesse
que aqui mesmo o trouxesse
de volta à sua margem?
Caminhante
-Este barqueiro é já só do
mar.
Pois há sempre uma margem
para os caminhos ligar.
Rapariga
-
Se o
chamar ele virá?
Rapaz
-
Se
gritar eu o trarei?
Contador
Pois se ele está na história
que
guardo na memória...
Rapariga
-
Conta
então de novo a história.
Rapaz
-
Sem nada
acrescentar.
Rapariga
-
Nem tirar,
nem mudar.
Contador
Era uma vez um barqueiro
que jurara alcançar
a outra margem chegar.
Eram as estrelas o seu fito
o longo largo infinito
que via no azul do céu.
E a si mesmo prometeu
novo caminho buscar
e sempre sem parar
oceanos navegar.
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